O MARTELO E O ALICATE

Meu pai nasceu no semiárido, no perímetro da seca, no interior do Estado da Bahia, num lugar seco e esturricado. Meu avô paterno era alambiqueiro tornando-se, pela convivência com a cachaça, alcóolatra. E quando bebia, a minha avó virava saco de pancadas. Essa mágoa, meu pai carregou pelo resto da vida, tanto é que ele morreu sem jamais colocar uma gota de álcool na boca. Ainda adolescente veio a pé para o Estado Mato Grosso, fugindo da vida dura do local onde nascera. Aqui ele trabalhou muito no garimpo, à procura do que não guardara nos desvãos da terra até bamburrar com uma grande pedra de diamante. Com a venda da pedra preciosa, ele voltou à Bahia e trouxe para cá a sua mãe, irmãs, cunhados, primos tios e toda a parentalha.

Ele não frequentou escola. Aprendeu a ler sozinho e a tocar violão de ouvido. Este último dom o ajudou a seduzir a minha mãe, com quem teve 05 filhos. Lia, insistentemente, a Bíblia, onde tinha predileção pelos ensinamentos do Livro Eclesiastes que recitava de cor.

Nenhum dos seus filhos tem o sobrenome do meu avô pelas razões acima relatadas. Foi pedreiro, sorveteiro, político, bolicheiro e farmacêutico, pois receitava remédios porque lia, nas bulas, a sua serventia. Como barbeiro tinha uma máquina manual de cortar cabelo que utilizava com maestria na minha cabeça e do meu irmão, deixando apenas um frondoso topete.

O meu pai construiu a nossa casa de adobes fabricados por ele com a minha ajuda e a do meu irmão. Lembro-me que um dia, ela caiu parcialmente, deixando-o constrangido, querendo ir embora para outro local. Depois de exercer muitas profissões, adquiriu um bolicho e comprou uma pequena fazenda de onde tirava parte do nosso sustento. Foi lá e com a minha caixa de engraxate que aprendi os primeiros rudimentos da lida.

Foi, também, com o meu pai, que aprendi a ser “pau para toda obra”. Nunca me deparei com dificuldades e obstáculos que não conseguisse enfrentá-los, e me tornei bacharel em direito e advogado há muitos lustros. Quando vejo advogados engravatados se intitulando de juristas, lembro-me de uma palavra que anda esquecida: rábula.

O meu pai se metia a consertar todas as coisas desconsertadas. Qualquer emergência, lá estava ele com seu inefável martelo e seu parceiro: o alicate. Instrumentos estes que lhe serviram uma vida inteira. Quando surgiram o rádio, a televisão e outros aparelhos eletrônicos, o martelo e o alicate tornaram-se obsoletos, perderam grande parte de suas utilidades, mas ele insistia, em utilizá-los.

Quando observo que o tempo a percorrer é bem menor que o já percorrido lembro-me, também, que estou ficando esquecido num canto qualquer, como afirma a canção popular. Perde-se a validade e de pouco serve ficar lembrando aos outros a nossa terminal e insignificante existência. Acho que a vida é isto: termina-se sobrando. Enfim, como o martelo e o alicate antigos do Seu Tibúrcio, perde-se as funções e o lugar no mundo. Afinal, “a vida é trem-bala parceiro. E a gente é só passageiro e precisa partir” (Trem-Bala – Ana Vilela).

Renato Gomes Nery. E-mail – rgnery@terra.com.br

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